Preconceito: Um desabafo sobre algo entre indignação, tristeza, força e exaustão

O preconceito arraigado nas pessoas ao redor de nós e em nós mesmos pode tornar-se tão doloroso que parece-me inclusive muito complicado escrever sobre isso considerando minha condição de vítima de preconceito étnico-racial em muitos casos ainda conjugados com outras condições como a de ser mulher especificamente do agreste nordestino. Pergunto-me: Como pensar, tratar, remediar uma situação de preconceito? Diante das instituições, dos grupos sociais diversos, dos agentes políticos representantes de tal ou qual posicionamento, sempre haverá aquele a dizer-se livre de preconceitos.
Refiro-me aos finos tratos que são expostos nas entrelinhas das interações sociais, aquelas que se dão entre as vítimas de preconceito por parte de instituições de prestação de serviços públicos ou privados, ou seja, o preconceito institucional, construído em espaços sociais onde pode-se ver com clareza a ausência de negros nos quadros internos, se não for por meio de concurso público não fraudado. Também é possível perceber posturas discriminatórias entre usuários de tais serviços e seus atendentes, que comumente destacam com o olhar, do meio de dezenas de pessoas, aquelas 'mal encaradas', 'mal arrumadas', 'provavelmente mal educadas' ou simplesmente negras. Não quer dizer que aquelas pessoas destacadas do todo estão sofrendo preconceito, pelo contrário, onde uma pessoa séria e respeitável construiria essa postura tão agressiva? Porque uma pessoa séria e respeitável teria que agredir a sociedade em volta com cabelos black power ou rastafari? Porque teria que autoafirmar-se diante dos de seu entorno com seus dizeres, sua postura crítica, suas manifestações cotidianas de demarcação de territórios de respeito? Eles não teriam de que defender-se afinal, os outros, todos os outros que não são/se afirmam negros, ditos respeitáveis, jamais tratariam com diferença aqueles que, a princípio, são iguais.
Piada. Jocosidade. Além! Farsa e fingimento. Hipocrisia seria o termo mais adequado.
Como tratar a postura daqueles que não se opõem à moda étnica mas não a aceitam nos cabelos de seus filhos? Como pensar a compreensão pedagógica do professor ou professora que olha com desdém os alunos e alunas negras? O que pensar da educação dada a um adolescente negro que sente-se ofendido ao ser chamado de negro? Como desvencilhar-se de uma vida inteira acompanhada por piadas infames e comparações desastrosas de suas características físicas com qualquer elemento vivo não-humano ou inanimado jocoso de cor preta e de textura áspera?
Essas questões são contundentes para problematizar o caráter de desumanidade contido em atos de preconceito que se supõem inexistentes por estarem imersos nas práticas de interação, comunicação e julgamento, abrangendo a área dos valores e da moral de toda uma nação, e que são tratados como nada mais que um modo de ver a vida com humor.
Demorei 19 anos para entender que meu cabelo era bonito e poderia estar solto e que o fato de ele não crescer em linha reta diretamente olhando para o chão não o desvalorizava em nada, ao contrário, dava-lhe graça e movimento. Demorei mais ou menos esse tempo para perceber que não era obrigada a fantasiar-me de menina da Malhação para não passar por situações de preconceito (refiro-me ao programa de jovens geralmente bonitos e ricos da rede globo, em sua maioria brancos). Entendi sobretudo, depois de algum tempo, que posso tanto quanto qualquer outra pessoa usar, fazer e falar da forma que julgar conveniente sem que isso seja motivo que autorize alguém a me intitular de 'neguinha' como adjetivo pejorativo. Entendi por fim que ser negra não e ridículo como a sociedade formadora das nossas condições sócio-psicológicas tentam nos impor.
Foi-me ensinado que o negro, já que já era negro, deveria tentar remediar essa situação (leia-se a situação de ser negro [isso se remedia?]) vestindo-se, comportando-se e propondo-se a posturas que se espera de pessoas bem educadas, de família, ou seja, brancas, pois quanto mais sentisse-se à vontade em um estilo próprio, não convencional, não frigorificado nas passarelas e no horário nobre no núcleo rico das novelas globais, mais colocar-se-ia em situações constrangedoras como se desse motivos para ser agredido.
Percebo esse tipo de postura como um posicionamento político negativo diante dos conflitos cotidianos em torno da imagem das pessoas, principalmente no que se refere à uma condição racial ou étnica. Percebo que esta escolha é compreensível como postura de preservação para diminuir situações de preconceito e evitar dor, sofrimento. Percebo de outro modo que trata-se de uma postura que negligencia a necessidade de impor ao outro interacional-social o dever de respeitar as decisões alheias, os usos dos corpos como manifestação política de um lugar social pormenorizado que pretende-se em pauta e em palco.
Acredito que os corpos refletem as mentes, as ideologias ou, como queiram, as aspirações teóricas de cada sujeito social. Neles podemos ler muitas vezes parte do que as pessoas querem dizer sobre si, mas eles em si não podem ser objeto de julgamento desses mesmos papéis. Ora, essa colocação paradoxal deve ser pensada como a positivação do hábito de ler nos corpos alheios aquilo que eles carregam de interior.
Parar um ônibus na rua e revistar apenas a bolsa da mulher negra.
Ter medo do jovem negro que está só na parada de ônibus.
Revistar apenas o negro do grupo de amigos que entra no bar.
De outro modo:
Perceber que a menina de rastafari de fato é bonita e é considerada assim por muita gente, apesar de não ter alisado seus cabelos como manda a regra.
Entender que os lenços, os turbantes, a crença, os orixás, o universo espiritual herdado por gerações e gerações está ali sendo tão sacro e puro quanto o jesus loiro que morreu de câncer de pele no oriente médio por falta de protetor solar e condena até hoje, depois de 2010 anos de pregação pseudo-cristã, a positividade contida na diversidade manifesta nas culturas mundiais, inclusive nas organizações ideológico-espirituais das religiões afro-brasileiras, ditas pagãs.
Sinais diacríticos: aquilo que um grupo de pessoas considera importante para dar-lhes identidade e que pode, entre outros modos, manifestar-se em seus corpos. Para mim a estratégia é o choque!
O choque da cor já não é suficiente porque não é subversivo ser negro, e apenas menos importante. O choque do discurso se perde nas ruas silenciosas pois não se faz questionar com palavras a postura daquele que lhe olha e julga à distância. O choque da aparência deve ser valorizado como postura política de quem não aceita ser tratado de forma subsidiária por uma decisão estético-política-afirmativa diante de uma sociedade hipócrita que não tem a menor noção dos danos sentimentais, psicológicos, sociais e políticos do escracho disfarçado que é o preconceito étnico-racial nas ruas, nas instituições, nos círculos de lazer e impressionantemente nos círculos de produção e transmissão de conhecimento. Devo comentar do preconceito dentro das casas e das famílias? Tantas vezes mais cruel.
No fim das contas não há fim, mas caras-à-tapa diários, único e desgastante meio de sobreviver na selva do apartheid enrustido que é nossa sociedade, nas suas diárias situações de desconforto e tristeza impostas pelo olhar desastroso de agentes sociais preconceituosos personificados em brigas familiares, proibições de acesso a lugares, inclusive lugares à mesa ao lado dos pais intransigentes e duros com a diferença, bem como de lugares sociais públicos e igualmente capciosos.
Enquanto houver cor em minha pele haverá crítica em meu sangue, pois é ela que, sendo vista, impede os outros de verem aquilo que de tão positivo eu puder ter construído em uma carreira intelectual, profissional, militante, mística, pessoal ou de qualquer outro tipo. Minha pele é minha crítica porque é por ela que me julgam. Minha pele é igualmente meu cabelo, minha roupas e meu posicionamento acima de tudo e seguirá sendo a razão primeira de ser necessária a postura de guerra a favor de uma cultura de paz que possa me incluir e que me permita transitar ao menos do meu quarto até a porta da sala sem ser lembrada que para desgraça humana eu 'sou neguinha'. Embora seja e goste e afirme diante de todos vocês, quer isso agrade ou não.
Minha pele é meu golpe e meu contra-golpe.

Comentários

Perfeito nega, se vc escrever sua dissertação com a mesma paixao, certamente produzirá um texto grandioso, parabéns...
Sagatibando disse…
Tocante e fundamentada, articulação do corpo, mente e alma! Saudações Matuta Moderna,
emano energias de uma semana versada nas prosas das belas forças críticas dos nossos seres!

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