40 graus

Me vi deitada em posição fetal com meu filho ao lado
Seria conchinha em família se eu não estivesse exausta pensando quem irá lavar a louça se não eu
E se ele não ardesse em febre há dois dias
Eu cumprirei 40 anos
Ele cumpriu 40 graus de febre
Nenhum de nós tem forças hoje para muito mais
Sou grata e celebro, pois tenho como resolver
Mas abandono o positivo tóxico que anula meu cansaço que se acumula há doze anos
Desde que eu soube que não estava mais só 
E, por outro lado, que sim, estava
Meu cansaço se acumula há 18 anos desde que me roubaram o direito ao meu corpo
Desde que novos traumas foram inaugurados fragmentando a falente autoestima de mulher negra nordestina interiorana
Sem movimento negro que me amparasse
Sem feminismo que me amparasse
Nas salas de exame de corpo de delito
Com todos aqueles homens brancos me tratando como uma vagabunda
E me reduzindo a ninguém 
Hoje eu entendo o quanto é custoso exigir valor e respeito
Construir um lugar amado dentro do que foi a sargeta de um peito corpo ferido
Humilhado e estuprado
Meu cansaço se acumula desde que cada laudo depressivo chegou
Pós violência 
Pós parto
Pós pandemia
Deitada em posição fetal ao lado do meu filho que arde em febre
Com plenas condições de receber cuidado e se recuperar
Eu penso que é urgente colocar-me em situação de colo, sem sê-lo
Apenas merecê-lo
Depois de tanto tempo acumulando exaustões impreteríveis eu já não sei mais descansar
Estou de férias e sigo exausta
Carregando meu menino cujo pai não liga para saber como ele está 
E que o deseja melhoras quando adoece
Como fazemos com conhecidos pouco íntimos 
Por mensagens frias
Com contas pagas pelos bolsos exaustos de uma mãe preta
Que tem plenas condições de cuidar de seu filho
E nenhum direito a lamentar
Continuo pensando em quem vai lavar a louça
Se não eu
E cozinhar mais uma vez
Dentro da maravilhosa condição de ter como comprar comida
E pensar que novamente terei que cozinhar
E lavar
E limpar
E falar sem tremer
E ser ágil 
Firme
Eloquente
E ter equilíbrio emocional
Recentemente mais um laudo chegou
Ela não consegue aprender como pede o capitalismo
Nem organiza os sentimentos de forma a lidar bem com o peso do mundo 
Minha casa está cheia de pó, os cômodos se revezam em limpeza e ordem na velocidade do tempo que resta para o asseio da alma
A sobrecarga de uma mãe só é notada quando se acumula por cima dos móveis 
Na pele de seu rosto
No ardor de sua pele e seus olhos horas expostos a um eterno salvar o mundo na tela de um computador
Uma velha me sussurra: filha, não foi isso que eu te ensinei, quebre a moenda de cana, ponha veneno na sopa dos patrões e fuja para o Uruguai 
E eu penso em dizer à minha velha que o capital já chegou lá 
Eu preciso fazer a revolução 
Mas, quem vai lavar a louça hoje?

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