Mais um pouco sobre meu trabalho na pequena e cativante comunidade de Coqueiros

Minha relação com o campo de pesquisa tem se dado de forma relativamente tranquila. Tenho acesso a várias pessoas e famílias, construí algumas relações de amizade na comunidade e tenho liberdade de transitar nos lugares públicos e instituições locais com tranquilidade. Costumo sentir-me insegura antes de realizar as visitas para aplicação de questionários ou para realização de entrevistas por não conhecer as pessoas com quem vou conversar e tenho medo de talvez estar incomodando ou de parecer uma pessoa 'fora da realidade' (como dizer isso de maneira que caiba em um trabalho de gente séria?) ao chegar na casa do interlocutor sem nunca tê-lo visto e dizer “boa tarde! Tudo bem? Me conte a história da sua família por favor.”... eu acharia estranho. Mesmo assim, na maioria das vezes fui muito bem recebida. Em alguns momentos aconteceu de ao chegar em uma casa pra aplicar questionários as janelas serem fechadas na cara ou de dizerem que não iam responder porque estavam ocupados ou não tinham tempo naquele dia (ou em qualquer outro em alguns dos casos).
A marca que permanece na minha percepção é de um lugar de pessoas tão receosas quanto eu com aquele contato, mas que, depois de feito, sempre surgem também vários sorrisos gratificantes. Recebi convite para ir à praia, a festas ou para simplesmente tomar uma cerveja com os da minha idade. Alguns dos idosos com quem tenho mais proximidade me convidam a escorar-me na varanda pra contarem-me a mesma história pela terceira ou quarta vez e para perguntarem sobre o trabalho ou sobre a vida como faz dona Maria, que, sem saúde para sair à rua passa as tardes na varanda tentando descobrir com sua pouca visão quem vai e quem vem. Eu, sempre que passo e paro, me apresento novamente. Depois de alguns instantes ela se lembra de mim e daí para a frente são pelo menos 15 minutos de conversa. Uma senhora muito simpática é também dona Alzira que sempre me oferece um doce suco de maracujá com biscoitos e doce de goiaba e me conta de sua vida, décadas a fio no Rio de Janeiro.


Sempre que estou em Coqueiros vou à casa de Júnior que está morando temporariamente numa casa de quintal grande com fruteiras, cachorro, criança, gente adulta, enfim, toda uma coletividade. Sua casa perto da praça está em uma reforma muito sonhada pela família desde algum tempo. Almoço muitas vezes em sua casa e confesso que a comida de dona Ivonete, sua mãe, é uma das delícias daquele lugar. Júnior, além de interlocutor, tornou-se um bom amigo. Às vezes estou em Natal ou São Paulo do Potengi e recebo suas ligações perguntando notícias e querendo saber qual vai ser a data da próxima ida a Coqueiros. Nessa última fase de pesquisa temos usado apenas até logo e muito comumente, até amanhã.
Tenho investido tempo na estrada, indo e voltando de campo todo dia, pois durante as noites uso o tempo para organizar entrevistas, questionários, mapas, material digital, entre outros. Quando fico direto na comunidade o que ocorre é que a interação é continuada e a falta do momento de fim de dia compromete até a construção de um diário de campo. Confesso que uma de minhas deficiências é não conseguir gravar de memória as informações sobre o dia, as conversas e as vezes nomes de pessoas, lugares e datas. Enfim, sou obrigada a estar sempre anotando e fotografando, filmando quando possível, e ouvindo vez por outra que “lá vai passando a moça do caderninho”. Minha amiga Babá me perguntou algumas vezes 'o que é que eu escrevia tanto nesse caderno' . Manter o espaço da noite com alguma distância me possibilita manter a reconstrução mimética dos dias e garantir uma narrativa rica de alguns fatos.
Babá, cujo nome de batismo é Luzineide, foi meu primeiro contato em Coqueiros e até hoje mantemos um bom vínculo de amizade. Sempre a visito na sua casa no morro, conheço sua família, sua mãe, seus filhos e marido, algumas amigas e vizinhas suas. Ela é sempre muito hospitaleira e sempre passamos bons momentos conversando sobre coisas do cotidiano dela e meu.
Também aconteceu de conhecer pessoas em Coqueiros que não desenvolveram um bom 'primeiro encontro' e, ao contrário, manifestaram algumas desconfianças que pareciam terem sido resolvidas pois houve uma abertura ao diálogo, ao trabalho, à realização de entrevistas, etc, mas percebo nos últimos meses que a relação parece ter retroagido, como se tivessem se fechando às interações que busco por razões que me escapam, mas que de alguma maneira devem estar relacionadas aos contatos dessas pessoas com outras de fora da comunidade com quem eu não desenvolvi boas relações.
Conheci mais algumas pessoas que participaram de eventos organizados pela COEPPIR e Movimento Negro e Quilombola que foram Fernanda e Íngrid. Ambas são funcionárias da Casa da Família, a primeira recepcionista e a segunda ASG (Assistente de Serviços Gerais). As conheci em Natal em um treinamento para elaboração de projetos organizado pela COEPPIR que ocorreu na Casa da Cidadania.
Tenho transitado por Capoeira Grande, Serrinha e Rio dos Índios, comunidades vizinhas, a procura de pessoas que são referidas em narrativas em Coqueiros como referência em alguma área de interesse que eu apresente como seu Cícero Kubitchec, ex vereador e médico, morador de Capoeira Grande mas conhecido em toda região e seu Zé Belo, referência de pessoa dos Belo, família antiga de Coqueiros, mas que agora mora em Rio dos Índios.
Refiz entrevistas na Casa da Família e no Posto de saúde. Naquela havia colhido informações ano passado no primeiro semestre enquanto neste estive em contato em 2007 durante a pesquisa de graduação. Fiz isso como uma forma de atualizar dados, refazer contatos e me atualizar sobre as dinâmicas locais empreendidas através dos programas sociais e das ações advindas da prefeitura de Ceará Mirim e aconteceu de fato uma criação de dinâmicas. Fui convidada a participar de um projeto de 'contos' contando para a comunidade local a minha versão da comunidade o que de imediato é um desafio enorme, pois quando uma antropóloga poderá saber mais que o velhinho de 87 anos nascido em Coqueiros que lhe contou aquilo tudo? Além de conhecimento sobre a comunidade, o que de antemão seria incomparável, o que está em jogo aí é a legitimidade do discurso. Embora alguns moradores achem que uma monografia sobre Coqueiros possui informações que os próprios moradores, nascidos e criados como se diz, desconhecem, a antropóloga sempre será alguém que apenas cria versões daquilo que ela não viveu. Etnografia é apenas um período e não torna ninguém nativo. Acho que em alguns casos nos dá legitimidade muito mais entre nossos colegas de estudo e profissão – que não conhecem nosso campo – do que entre por exemplo eu, pesquisadora, e meus interlocutores – construtores da realidade que pra mim é transformada em problemática, sociologicamente falando.

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