Para minha nêngua, minhas avós.

Caneluda, magra e despenteada, quando eu era pequena, menina sambuda ainda, corria no quintal de tua granja com nome de doce. De longe te via, a tua parecença se misturava com terra e arbusto, o ìkó dos teus cabelos eriçados pelo vento. Quando já era perto, eu, miúda, sentia que tua saia longa era uma cachoeira que vinha se escorrendo desde o céu e, lá de cima, a senhora me olhava. Os raios do sol eram as marcas ao redor dos teus olhos, ensaiando no teu rosto o mapa do tempo. Nunca entendi porque a terra de vocês tinha nome de doce. Porque a senhora morava na Marmelada? Era bonito, mas sempre me pareceu misterioso pois não casava com as agruras do caminho. Talvez por refúgio ser.

Quando me contam da senhora, não tem colo, beijo, abraço. Não dava tempo, não era costume. Vocês amavam sem dizer a vida inteira, minha vó? Amor de preto era pecado nesse tempo, nossos peitos eram todos clandestinos. Olhe, eu recebi o seu recado, a minha herança é a maior de todas, aquela reza marcada numa folha de caderno, que era pra Ogun mas Exu trouxe pra mim. Cheirei a folha amarelada ansiando rastros do teu perfume, o pote de sankofa se derramou no meu colo e meu ventre sangra todos os meses a tua poesia. As roupas brancas macularam-se das tuas memórias. Às vezes sonho sentada na sala de tua casa, tomando mate amargo adoçado com rapadura. Era bom no tempo que a gente podia fazer isso, uma pena não ter te conhecido a tempo. 

A senhora me ensina aquela reza pra fechar corpo, minha vó? Ando muito precisada mas nunca acerto a rama quando vou pro mato buscar meu benzimento. Os frutos do sul voltaram a nascer, amanhecem pendurados nas árvores em ramas trançadas à mão. Ando precisando da sua bênção e da receita de fechar o corpo. Eu sei que a senhora me ensinou a ler, mas eu não confio nas escrituras.

Minha herança foi mesmo a melhor de todas. Na possibilidade de escrever, a senhora me segredou sua fé.

Sua bênção minha véia.

Com amor e saudade, Stéphanie Moreira.

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