Traça


Tateio as paredes de cimento cobertas por cal e tinta rala branca de minha sala como quem lê em braile um jeito de se sentir em casa, mente atordoada, devaneando relações, compromissos e falsas promessas, sonhos e projeções de que minhas verdades habitavam longe de mim. Fecho os olhos e abro novamente para saber onde está o corpo da minha cabeça perdida e estou ali angustiando ausências. Busco o chão de cimento pintado de cinza, manchado de arrastados de cadeiras e do próprio tempo que encravou as unhas no piso da cozinha para não ser arrancado dali. O vejo cismando comigo enquanto fervo quilos de flores de camomila para banhar minha alma que se perdeu no rumo das viagens que fiz. Decido soltar tudo e todos e quando me perco leio novamente as paredes e o chão e o teto e quando não quero abrir os olhos eu cheiro o meu lar como quem se nebuliza desesperada por abrir o caminho dos pulmões até os pés para enraizar. Um chicote eletrônico me persegue apitando lives que querem me matar. Produza, produza, produza, estou aqui, onde você está? Produza, produza, produza, onde você está? Produza onde você está! Ninguém sabe onde estou, se estou. As paredes me deixam recados quando as toco e quase sinto sua pele quente palpitar. O sol desenha sempre o mesmo adinkra nas minhas companheiras. Enquanto exasperada não o via, agora admito a arte figurativa, a paisagem interna do caos, sentado, para se ver passar. A avenida começa na porta da frente desde onde se vê a rua de trás pois minha casa é nua, não veste portas. Fiz amizade com as traças e me presenteei a elas, que me comam. Ontem mesmo acordei sem uma perna e tive que me deitar por três noites e três dias até que crescesse outra em seu lugar. Deixo que as traças me comam bem comida até que eu goze sabedoria, o oco que me deixa ver melhor. Largada, a rede range impertinente mas apenas porque peso dentro dela. Hoje cedo comi o casulo que cresceu ao redor do meu corpo depois que as traças me comeram e jogaram partes podres pelas brechas do portão da frente. Fiquei forte depois de comer minhas dores. O silêncio que eu escolho é o que me cura.


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