Carta de amor quatrodejaneirodidoismilivintitrês

De corpo esguio, magro, a curvatura de suas costas dava parte do tom introspectivo de seu corpo. Calça cinza de prolongamento curto, pés descalços, extremidades alongadas com seu nariz mouro. Moreno. Era banhado em lapidação, tinha acabamentos primorosos que se notavam de dentro para fora e uma elegância gentil que disfarçava bem os pedacinhos quebrados que levava dentro do peito. O caos virginiano que habitava seu momento não alterava o tom de sua voz, pensava sob um rigoroso método de auto resgate, respeitava a abundante e excessiva arte do espaço que brevemente habitou e guardava em sua própria estética o minimalismo.

Tratava-se também de uma casa gentil, que lhe dizia o quanto o rapaz completava a parte que faltava naquela paz, ornava em silêncio. Não que não fosse esperado, sua voz discreta soava mais como um tom de retorno. "Seja bem vindo de volta meu bem! Por onde andou por tanto tempo?". Vindo de terras estranhas, longínquas, a poeira nos seus sapatos insistia em lembrar da brevidade de seu pouso, talvez fosse o mesmo pó Ceilândia das fugas para a rua de trás em busca de aventuras de criança bandoleira. Seus exus bem que trabalharam, chegou inteiro e íntegro até ali.

Caramelado, era cria de matriarcado mestiço cuja unidade tinha sido dada pelo reconhecimento entre elas, mulheres gigantescas que caminhando a passos curtos entendiam que a direção importava mais que o ritmo, havia muita gente sob suas asas e elas não se abandonaram, fizeram todo o possível naquele tanto de amor ameaçado pela subsistência. Preto, olhava sua mãe de cabelos brancos emocionado, preocupado e cuidadoso, pensando em estratégias de como ser colo. Levava vida de herdeiro, os valores de gerações o habitavam e já desfilavam pelo mundo através de seus filhos.

Certa noite, cansado de tanto se buscar em si, abriu uma pequena brecha para arejar a alma, mas não lembrava da intensidade do vento ao abrir as janelas de sua vida cheia de sorte. Sentou-se à mesa com Exu, desabafou suas dores de homem e também as de menino. Exu, preto, enorme, olhar focado naquilo que somente ele conseguia alcançar com as pedras que lançava, lhe disse que nele rondavam a desordem, o inesperado, aquilo que não cabia e não podia ser. 

"Então, quando encontrar o caos, esteja pronto pois é lá onde habito."

Foi agraciado com a embriaguez do vinho de palma e, ébrio, tropeçou por dezenas de calçadas e ruas até chegar à praia. Lançou-se feito um cão no mangue da praia velha e sentiu o sabor de nascedouro. Nanã mesma lhe hidratou a pele e lhe pôs de pé outra vez. Logo pela manhã acordou ainda sentindo que sua janela havia se movido durante um sonho estranho.

Naquela tarde uma moça lhe saludou. Enamorou-se em uma encruzilhada quente de mormaço pela fêmea que lhe cruzou o caminho farejando rastros de completude. Ela lhe cantava em versos sobre o absurdo, reparava nele como se fosse o último de sua espécie, raro. Sentia nele cheiro de mangue e dizia, "me bagunce". Com hálito de vinho de palma o rapaz homem a beijou por toda uma noite, deitou o rosto dela em seu peito, enroscou-se e habitou a desordem.

Foi embora seguindo o pó de seus sapatos e os enredos pretéritos, ainda enganchado. Ela entoava sua ida nos versos que eram possíveis, trovadora, em um costume besta que cultivava de escrever cartas de amor.

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