O ogó de Exu

Vinte e oito de dezembro foi a primeira obrigação. Seu preceito durou sete dias. A dezenove de fevereiro aconteceu a segunda. Outra vez resguardaram-se em sete marcando um tempo de prosperidade e quebra de demandas. Foi fecunda a procissão, o ogó de Exu, cultuado naqueles dias, era feito de madeira de lei marrom escura, portava tamanho respeitável e postura proeminente, adornado com búzios da costa e cabaças recém curadas. Foi alimentado e dançou por toda a avenida propondo um novo jeito de perceber os bons costumes e a honestidade.

As entidades de rua vestiram terno. Uma capa vermelha com longa calda ocupava a terceira fila da procissão, logo após os capas pretas e os caveiras. Nossa senhora de Oxum vinha logo atrás portando seu manto azul cristão com franjas de contas amarelas. A semiótica se conformava tal qual o sonho lúcido que planejaram compor, treinar e viver, a proposta de criação em arte mais disruptiva de todo o preceito. Os iawôs resguardados vestiram pele e panos brancos sobre os quais por vezes também se deitaram, ele apagava sua mente enquanto ela sonhava alguns absurdos, encontrando-se ao meio, aos pés do ogó.

Confiavam na magia dos humanos feita anos atrás para bloquear a passagem de novas vidas, ambos tinham o corpo fechado mas de maneiras diferentes. Não havia pecado por ser conceito inexistente, rezaram mesmo em ceticismo, cumpriram tudo a que se dispuseram, jogaram as moedas na estrada e saíram sem olhar para trás. O metal caiu no chão sabendo que não era sentido, o mesmo Exu de sempre estava sentado na calçada congelada pelo tempo vendo-as cair, vendo a descrença e a insistência caminharem juntas novamente. Em algum momento pensaram que a saudade mais avassaladora era a primeira, pela ausência de pontos de referência para lidar com o destino, não se equivocaram. Os medos de agora amoleciam, se derramavam pelo chão e não ousavam endurecer escorrendo para lá e para cá, eram mais poças de percepção do que de fato algum anseio, seu movimento ensinava a pensar.

Os resguardos tem dessas coisas, quando saímos tendemos a ver o mundo de outro jeito, ainda mais depois de dar-nos conta de que Exu está tão perto como sempre esteve e nunca ousamos ver. Cuidado nas encruzilhadas, ela dizia, vendo ambos parados cada um entre oito bocas do desconhecido. Olhava tudo atentamente, estava presente e viva, porém cansada. Não sabia que era possível, mas deitou-se no colo de Exu e adormeceu ali, roncou e babou de tão exausta, parecia ser o lugar mais seguro acreditando que o contrário de Exu é cárcere. Ele cultuava o amor e tentava se reerguer em um campo de batalhas onde levava nas mãos as armas e o próprio coração fundidos, tinha a habilidade de fazer daquilo um colo e deitava-se na própria verdade que honestamente e a cada vez o resgatava. Ambos recobraram a consciência de que precisavam olhar para si embora também precisassem ser vistos, fazia falta ser inteira aos olhos de alguém.

As entidades apreciaram a cena de separação quando saíram do quarto de recolhimento, era uma procissão invertida. Entregaram suas joias sagradas levando ainda seus braços e pescoços marcados por aquele tempo de retomada. A legião se separou de forma que ambos caminhos estivessem cobertos. Não era pela inabilidade humana de dialogar com o sagrado que ele deixaria de existir e cumprir com suas missões. E não por caminharem sobre poças de medo escorridas pelo chão deixariam de mover-se a solo seco e seguro. Eram deuses os braços de alguém.

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