Carta de despedida, pois achei mesmo que você ia embora

Senti sua partida homeopaticamente. Primeiro pensei, depois agi, mas agora sinto um choro acontecendo aqui por dentro que só eu escuto, me sinto pequenininha, molhada e encolhida. Por fora de pé, fazendo o que é preciso, atenta, mas me sabendo mole e escorrida, com desejo de me jogar em um lugar macio e ficar. Hoje vi um prédio de postites, uma arquitetura paulistana estranha que brotou do nada e eu quis anotar o prédio inteiro de lembretes irremediáveis e inadiáveis para depois sentar em frente e ler. As coisas dentro da minha cabeça não fazem sentido, mas quando elas saem eu tenho a chance de trocar a ferramenta. Será que por alfabetizada que estou entenderei o que escrevo? Talvez não. Parece sempre que foi feito por outra pessoa, pois quando me derramo aparto a mente da realidade, fico habitando outro lugar onde tudo faz mais sentido. Dizem que há nomes para pessoas assim, síndromes, conceitos. Eu apenas passei a vida habitando uma mente estranha e você me diz que não, que é normal ser assim, que me entende. E eu fico molhada e pequenininha, encolhida dentro do meu cérebro caçando borboletas em labirintos de letras que viram número que viram leões e outros bichos, por vezes me engolem e me cospem depois intacta. Continuo molhada e escorro a baba de quem me comeu inteira e sigo correndo pequenininha a ponto de caber inteira dentro da minha própria cabeça e achar ela mesma grande demais. Imagine quando vejo Ogum sobre minha orí, nem palavra tem para descrever o tamanho das coisas. Sinto que esse corpo flutua, adormece, acorda, corre, deita, pede colo mas não sabe falar, quando aprende as palavras perde a voz, e sai correndo de novo dentro da própria cabeça. Por fora tem uma mulher possível sentada e sóbria, calada, que faz um bico estranho de concentração e digita como quem psicografa um recado do além. Mas falar ela não sabe. Parece sóbria, ninguém sabe o quão valente se precisa ser para habitar a mente dela. Por isso Ogum? A pessoa pequenininha e molhada que corre dentro do labirinto de sua mente leva um facão mágico para cortar sobre o qual às vezes caminha para encontrar equilíbrio, no qual se olha para saber se ainda está ali, o qual esconde para que ninguém mais o veja e a descubra dentro de seus truques, privilegiado daquele que vê seu Ogum. Senti sua partida homeopaticamente e pensei que seguiria com todas as bolinhas equilibradas em minhas mãos mas três dias depois quis jogá-las fora, te quis de volta aqui comigo, e sabendo que você vivia sua própria retomada entrei dentro da minha mente molhada e pequenina e deitei alternando entre sentir frio ou conforto. A menina dentro da minha mente não parava de correr e meu coração batia tão lentinho que me dava uma agonia aquela falta de ar. Ouvi cantigas e dancei com elas, fiz as coisas mais cotidianas tentando vestir novamente a roupa de paisana para não me perceber tanto e evitar ser dramática dizendo que deixar ir dói. Precisei escrever tudo isso como quem psicografa um recado do além, sei que já disse isso mas é que a menina que corre na minha cabeça também anda em círculos e revisita insistente alguns lugares que eu mesma queria que ela não visitasse. É uma dádiva a capacidade de me acessar desse jeito inusual e saber como contar em palavras, mas não tem serventia. Isso tudo deveria ser uma sessão de terapia. A menina na minha mente vira várias de repente e elas são pequeninas e húmidas e ficam ali empilhadas encolhidinhas, se aquecem entre si, não sentem quente nem frio, fica confortável dentro da mente enquanto digito e o coração, outro órgão, outro território do corpo, dono da emoção - aquele que na verdade não leva nada nas próprias mãos - mora lá do outro lado e sente de um jeito que vai pela garganta e pelo estômago. Certa hora todos os órgãos se abraçam de conchinha buscando conforto. Quem disse que a gente não se abraça? Tem tanta gente morando dentro da minha cabeça que daria para montar um exército. Lamento não ter quem os direcione, por vezes se enfileiram correndo nos meus corredores internos, engarrafam-se e eu mesma, a sóbria e pseudoequilibrada, preciso correr na rua, sentir vento, pedalar, qualquer coisa que permita deixar ir meus fragmentos jogados pela borda de minhas orelhas, por baixo de minhas unhas, pelo meio de minhas pernas, pelos poros gotejados no suor do reequilíbrio. Senti sua partida homeopaticamente e me perdi com as medidas. Não consigo te pedir que me ajude a medir o oceano, tenho medo de te afogar.

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