Gizfa

Gizfa estava em pedaços. Ela limpava sua casa e se perguntava quando o pó das coisas havia se tornado mais importante que ela. Nunca havia pensado que a criatividade humana seria capaz de dar-lhe um lugar menos prestigioso que roupas no varal e sacolas no armário. Naquela noite era lua cheia, o dia havia sido difícil, algumas durezas cotidianas, outras mais inusitadas, mas a lua sairia exatamente às dezoito horas e quarenta e dois minutos e o preto tão ansioso por estar com ela apesar de tanto, viria. Ela veria a lua e depois o veria, ainda maior. Gizfa não entendia como uma pessoa podia ser maior que a lua cheia diante dela, mas era só porque ela tinha perdido a dignidade e com isso, a noção de proporção e de como distribuir os sentimentos e os deslumbres diante da vida. Daquelas pessoas sinceras, esqueceu de desconfiar, baixou a guarda. Na maior lua o levou ao mar em maré cheia e confusa assim como estava ela mesma, sentaram-se sobre uma pedra e ficaram calados a sentir os respingos, aquele cheiro de quando se conheceram, um pesar angustiado de quem não sabe como consertar situações - sobretudo aquelas que se quebraram sem serem percebidas ao momento. Usava jeans e camisa de mangas longas. Caso não alcançasse naquela tarde o abraço tão esperado não estragaria a beleza dos ventos na praia por causa do frio. Era uma moça teimosa, procurou o colo não oferecido e o preto animou-se, quis sair e divertir-se com ela mas deixar o único lugar de paz dos últimos dias sem ter a garantia de que fora dali e daquele silêncio estaria tudo bem era muito arriscado. As brechas da paz não estão por toda parte, são relicários. Ela ficou um pouco mais. A lua surgiu discreta por trás de algumas nuvens no horizonte do mar, cinza e foi se inflamando até quase explodir. De repente levava para o alto do céu uma linha de cores entre laranja e lilás dominando tudo até que se fez noite e o mar prateou. Não havia mais como ficar, era preciso ir embora e Gizfa lamentou. Dançaram. Amaram-se. Ela queria entrar nos cabelos dele como quem foge do mundo feio agachada por dentro de um canavial, e depois ser quilombo outra vez. Aquele costume errado de hiperdimensionar a subjetividade da vida sem que estivesse de mãos dadas em sua loucura aumentou a discrepância entre aquela saudade-sofrimento e as necessidades objetivas de outra pessoa. 'Não, não posso. Preciso cuidar das roupas sujas'. No dia seguinte Gizfa foi limpar sua casa e encontrou sua dignidade jogada no chão.

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