Diário de uma negra. onzidinovembrudidoismilivintitrês.

Alguém tentou me vender uma carta de alforria. Era novembro de 2023, Belém, na Praça da República, entre os coretos - casa do povo de rua e do povo da rua, sobre a praça - antigas valas coletivas de corpos melanodérmicos, onde o moderno sobrepôs o colonial, sem cobri-lo.

Depois de Quitéria, Inocência, Estefânia e Cora, depois ainda de dona Mariana, alguém tentou me vender uma carta da alforria.

O vendedor eloquente e seguro dizia que custava R$800,00 a "carta de alforria do escravo". Rascunhava uma narrativa de aproximação, contando partes de um causo, fazenda, famílias de "senhores", lugar. Mas cada documento era breve e solto dos demais, empilhados na banca de madeira junto a moedas antigas, joias, facas, canivetes suíços, notas do tempo em que havia dinheiro de papel, espelhinhos e outros mequetrefismos. Eu olhava perplexa, no meio do mercado de pulgas, qual de fato era a semântica, em 2023 alguém tentar me vender uma carta de alforria. Liberta, parei, olhei, tentei ler, perguntei novamente. No terceiro documento desisti e saí andando, embebida em uma semântica do impossível.

Há dez dias em uma manhã quente, horas antes da Nêngua chegar, tentaram me vender uma carta de alforria. Quando o vendedor, branco-mestiço, me olhava, eu era cinza e meus cabelos eram pó.

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