O facão de Maria Flor

Apoiada no portão da frente de sua casa, sorria e acenava tal qual a naturalidade do cotidiano gentil. Maria Flor havia se tornado dura demais com ela mesma, mesmo quando se amava. Preferia quase sempre guardar silêncio sobre o que sentia por medo que a boca de suas angústias fosse capaz de engolir alguém, a tornando uma espécie de sequestradora de ficção científica. Levava dias ruminando a pertinência do que sentia, em silêncio, e aparecia quase sempre sem um braço ou um pedaço da orelha. Ela aos poucos era devorada pelos próprios monstros. Não lidava bem com a saudade, achava um troço alheio, estranho, que a distraía demais e a forçava a se expor caso quisesse alimentar o afeto com presença, nem sempre farta e constante. Seu desafio àquela altura da jornada era conseguir escolher o silêncio e a quietude em lugar de uma presença que estava plantada junto com o pé de espera.

Não permita que alguém te diga de diversas formas que você não cabe em sua vida, acredite na primeira vez que ouvir. Era o que reverberava em Flor. Fazia sentido. Ela o fazia, sentindo. Sentia muito por precisar dizer que era importante e valiosa, embora soubesse que o óbvio precisava ser dito em insistência no jogo de demarcação de lugares de existência. Preciso existir. É uma meta. Mas sempre saía com o coração meio partido. Se priorizar não é fácil em terra que confunde a capacidade das mulheres de zelar pelo próprio senso de preservação.

Imaginava o coração, músculo, mole, macio, molhado, sendo partido. O fio da faca precisaria estar afiado o suficiente para dar conta de partir um coração humano preservando suas partes sem rasgões indevidos, sem ser retalhado, apenas partido em dois. E como era tão sublime a missão, Maria Flor se comprometia com o seu próprio. Colecionava facas para ocasiões especiais, sempre em par. Uma parte cortava os laços que não lhe concediam a devida consideração, com a outra parte cortava seu coração, porque sentia que de qualquer forma seria partido.

Maria Flor usava plantas de cura para cicatrizar seus feitos, unia as duas bandas do órgão arquejante como quem cola o vaso de porcelana de mainha milimetricamente ordenado para a fratura não ser percebida, e amarrava tudo com cipó verde e maleável, para garantir que bem preso ficasse. O perigo era se apegar mais às facas que aos laços, como medida de prevenção de danos.

Habitava nela um desejo cada vez mais distante de viver a própria intensidade, pois temia a capacidade devastadora das suas emoções. Odiava o ciúme assim como a embriaguez, aquela sensação de ter o mundo girando para além do que manda a física que a fez parar de beber. E, enquanto reorganizava seus conceitos em relação ao afeto, sentia por vezes a necessidade de não amar. Havia aprendido de um jeito doído a se apaixonar, em relações de gente mimada que faz birra reivindicando a totalidade dos outros dentro das próprias disposições a se relacionar. Aquela mulher não habitava mais esse lugar, embora convivesse com os resquícios do ciúme, um peito queimando meio triste meio enraivecido. Pouca gente entendia porque para Flor era tão importante ser nomeada, apresentada, levada pela mão para lugares chatos como encontros de família. Flores negras são raras mas não gostam de redoma, o ciúme delas é mais que cansaço do exótico, quase medo de novamente dizerem que ela não é bem mesmo uma flor importante, é apenas uma planta no jardim. Nomes de outras mulheres apareciam, encontros com pessoas alheias, festejos e trânsitos onde ela mesma não estava e não estaria. Ciúmes de flores negras poderiam ser rebatizados com nomes estruturais.

O mais frutífero era voltar-se para seu mundo de coisas, suas próprias festas, afetos e preocupações, olhar o suficiente para si e não ser mais uma que aprendeu a amar vendo dramas tóxicos na novela das oito.

Mulher fácil, não gostava de se complicar, mas acabava sempre com homens mudos, quebrados ou confusos. Quando aprendiam a falar ou a pensar iam embora. Nunca sabia de suas vidas para além da superfície, seus sentimentos eram incógnitas, seus dramas grandes demais e sempre sem aviso prévio. Devido ao silêncio, não os via crescer e quando os conhecia já era fora de controle. Acabava com alguma frequência compondo casais que se sentavam para ver qual tinha o maior monstro. A fala liberta mais mulheres, pensava em como o silêncio deveria maltratar o peito de seus pretos, algo entre um véu, uma parede de tijolos e uma lata de fumo cuja tampa enferrujou.

Era domingo pela manhã, quente feito o sertão agrestino. Maria levantou cedo como sempre, passou o café, pegou a bolsinha de retalhos onde guardava os dinheiros mais cotidianos e seguiu para a feira. Passou direto do beco das frutas e das farinha e foi em direção ao mangaio. Lá embaixo, nas últimas bancas, achou seu Neco de dona Ana, o ferreiro da cidade. Escolheu um facão de cortar cana, de menor tamanho, mas bem afiado. O ferro do facão não reluzia, tinha um quê de envelhecido, daqueles que estagnou no estoque da loja e ficou esperando a dona chegar por uns 4 ou 5 anos. Foi para casa com Flor.

Ela entrou no mato e se danou a cortar folha, cortar galho, abrir caminho até as árvores maiores lá de trás do terreno do quintal, quase mesmo uma granjinha era a sua casa. Quando tinha já todas as folhas começou, com o mesmo facão, a cortar memórias até que não sobrasse nem mesmo uma inteira o suficiente que a prendesse nos passados. Abriu uma clareira dentro de si, larga e pediu aulas ao vento sobre como ir e voltar, e ir novamente, sem se prender nem sentir culpa por nada. O facão sangrava um leite verde que tinha ficado das plantas e parecia ter se reproduzido em seu fio. Maria Flor escorreu as últimas gotas desse unguento no peito, se agoou.

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