"Você deveria".

 A cada ano, paro de escrever. Retomo como se nada tivesse acontecido, nada além de perder o acesso ao tempo particular, de reflexão e abstração. Rejeito todas as palavras pressionadoras que indicam meus caminhos corretos e as formas sensatas às quais devo me moldar. Descanse! Tenha tempo para si! Você trabalha demais! Você precisa trabalhar nas coisas certas! Sempre tão urgente e fazendo-me parecer tão negligente com minha própria existência. Todas as escritas de mulheres, de negras, de mães, que falam sobre o quanto a sociedade nos nega espaço de mergulho em si não são suficientes para a auto reflexão das vozes que cobram. Por ora, prefiro o silêncio. Existem vozes suficientes habitando minha cabeça e preciso dar conta delas às vezes, não funciona bem ignorar meus ruídos, eles não desaparecem assim. As contas e preocupações com a limpeza da casa e a lancheira da criança não desaparecem assim. A busca pela autonomia não cessa apenas pelo meu desejo de realização, embora compreenda que sou a pessoa que dá vazão à realização de várias outras ao redor. Esse caderno virtual de escritos malditos um dia será lido por desconhecidas e, para algumas delas, certamente fará sentido. O meu primeiro livro fará sentido para algumas pessoas. Talvez haja um segundo ou um terceiro. Que tanto abri mão para ter o primeiro e agora isto, a cobrança de ter e fazer. O reconhecimento pelo meu trabalho já existe, eu me orgulho da minha escrita, da persistência, dos legados. Os vejo grandes mesmo habitando muitos becos. Conceição habitou um beco enorme e eu a reconheço grandemente. Os becos da memória. O que faria o beco virar título? Sempre me pergunto. O que será dos meus? Tanto os becos como os títulos. Entendo o impacto de mulheres excelentes que absorvem, transformam e distribuem rapidamente o conhecimento que há pelo menos vinte anos eu mastigo e rumino. Sou lenta. Minha natureza é intergeracional e, para certos assuntos, considero a pressa imprudente. Acho que nasci há mais de duzentos anos como a Nêngua, e nunca morrerei, por isso não tenho pressa e o mundo talvez não compreenda. Parece que eu corro. Talvez esteja correndo e esteja errada por negar minha lentidão. O solo por onde caminho é fértil, agradeço todos os dias. Agradeço também o fato de poder ser adubo. As métricas são conflitantes, o mundo quer ganhos altos, rápidos e particulares, e enquanto isso eu me arrasto e tenho sempre muito a repartir. Quando penso na potência que seria juntar meus ganhos sob minhas saias e tratá-los como meus, sinto que perco algo importante que me deu sentido até agora. Ao mesmo tempo, é certo, preciso juntar algo sob minhas saias, afofar as anáguas com as guaritas da dignidade. As vozes de fora me atrapalham, tornam confuso o caminho quando cada qual diz para que lado eu deveria seguir. E logo que consigo ir para um lado pensando que as escutei, elas se viram e caminham sós, porque de fato é mais rápido e fácil e particular como pede o mundo. Eu sou intergeracional, preciso pensar nos meus legados, a ancestralidade se tornou real e prática demais e não vejo possível abrir mão dela. De dentro da minha cabeça, preciso encontrar as vozes velhas dos troncos antigos para conversar, lá na sala das senhoras translúcidas. E só quem conhece meu legado saberá ao certo de quem falo. Por ora, agradeço o silêncio desse dia e a chance de estar comigo e meu ruído.

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