A primeira esposa

Querido amor,
preciso dizer que ando cansada de tantos desencontros. Dizem por aí que você mora nas coisas da natureza, nos deuses, no tempo, até mesmo dentro de mim. Sabe que existe um poliamor na minha vida, mas que carece de virar poligamia, carece de mais respeito e cumplicidade, do entendimento do lugar de cada um no mundo e entre todas nós. Eu serei sempre minha primeira esposa, a mais amada e cuidada. Meu amor por mim deveria ser no entanto mais imperativo em frear minha insanidade pública, meus devaneios em voz alta, as ridículas declarações de fraqueza, de solidão. Declaro-me minha imensa paixão por mim mesma diariamente, compro-me flores, cuido-me, acaricio-me a textura da pele e estou aprendendo a respeitar minhas marcas. As fissuras da terra não a fazem menos provedora de vida. As folhas secas são a beleza do outono já dizia a grande rainha. E quando o tempo completa mais um ciclo eu me telefono, me faço uma festa surpresa que me deixa tão, tão feliz! Uma velinha em um bolo ali da esquina e já posso sentir toda atenção e delicadeza. A flor que me deixo ao meu lado na cama em troca de um sorriso ao amanhecer. Os bilhetes que largo no meu caminho e alegram meu dia. Não posso me abandonar, sou tudo o que tenho. Amor, preciso muito tratar-me bem, é pelo exemplo que se aprende então espero que possa estar olhando tudo isso acontecer.
Minha casa-mundo é grande e por vezes fica tão vazia que o eco do meu silêncio vibra no peito de um jeito parecido à saudade, aquela grande vagabunda. Eu a odeio mas fiz uma moldura para delimitar o lugar dela na paisagem da casa, entendi que não consigo destruí-la, só o tempo.
Procura-se uma segunda esposa - colocarei uma plaquinha na janela das flores e espero que quando ela venha possa te dar uma carona até mim. Eu me amo, mas quero muito poder amar mais, e abraçar alguém fora de mim mesma que não precise ir embora ao final do segundo capítulo. A busca pela permanência é um vício mortal assim como sou eu, perene, sendo parcamente abastecida por afluentes temporários e frágeis. Amor, os símbolos que me deram desde sempre sobre como você seria não me ajudaram a ser uma pessoa melhor comigo, e me peço desculpas por isso. Espero que consiga voltar um pouco no tempo e esconder os rastros do que você não poderia ter visto, afinal como fica o mundo depois que passam os furacões? Destruído, e as imagens reverberam tristeza. Apague amor, da sua memória as correntezas insanas, os pratos rompendo-se contra a parede, eu nunca escondi minha enorme loucura mas agora penso que meu mais forte pedaço - a sinceridade descontrolada - é uma grande imprudência. Escrevo cartas porque me amo e sei que preciso ouvir verdades que apenas eu sei. Postarei esta carta no correio e sentarei a esperar o carteiro me trazer minhas linhas borradas, nesse novo caminho quem sabe minha outra carta não chegue até você. Não me comente o que escrevi por favor, se for para caminhar nas superfícies de um afluente seco. Não consigo nadar se não houver abundância. 
Com amor,
a primeira esposa.

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